
O
pequeno agricultor orgânico ou agroecológico não é o problema. Ele é a
solução. Tempos houve em que o homem do campo comparecia ao armazém da
vila só para comprar fósforo, querosene, sal, fumo de corda, pinga e
tecido para costurar sua própria roupa. O agricultor também deixava com o
comerciante parte do dinheiro da venda de seus produtos em forma de
empréstimo; o comerciante usava este dinheiro como capital de giro a
juros bem mais suaves do que pagaria para o banco. E, digamos de
passagem, hoje tanto o comerciante quanto o agricultor estão enterrados
em dívidas com os bancos — enquanto a fome impera nas grandes
plantações.
A
produção era diversificada. Os agricultores produziam pequenos animais
para o abate e animais de porte maior para o trabalho e fornecimento de
leite. Tinham por tradição manter um pomar, uma horta e uma reserva
florestal perto do riacho ou nascente para que o gado tivesse sombra e
água fresca.
Quando
se abatia um porco, por exemplo, só se perdia o grito e o pelo do
animal. Chegava-se ao capricho de desossar e colocar os ossos junto ao
fogo, dentro do fogão à lenha — esse material, depois de queimado,
virava farinha de osso para alimentar os animais. As cascas dos ovos de
galinha também eram torradas no forno e transformadas em cálcio para o
trato da terra e dos animais. Já os resíduos não aproveitáveis para
consumo humano ou animal viravam alimento para as minhocas, que
renovavam o solo.
A
propriedade produzia cana de açúcar, milho, feijão, batatinha, arroz,
mandioca, trigo e outras variedades. O desperdício chegava a quase
zero — e isso permitia uma maximização da economia agrícola.
Mas
para que tal diversidade fosse possível apenas com a mão de obra
familiar, sem mecanização, a extensão de área cultivada não podia ser
muito grande. O número de filhos sempre era expressivo, pois eles
tornavam-se mão de obra quando crescidos. Os mais velhos saíam da
família para constituir nova família; e logo vinham os mais jovens para
substituir a mão de obra carente.
Infelizmente,
as políticas públicas foram totalmente orientadas para as necessidades
urbanas, em detrimento das demandas do campo. O mundo rural, assim, foi
abandonado à sua própria sorte. Diante deste absurdo político da
administração pública das últimas décadas, o agricultor foi
desamparado — e iludido a viver na cidade. Pensou nos seus quatro ou
cinco filhos ganhando, junto com a mulher e ele próprio, um salário
mínimo cada um. E, somando tudo, pensou que ficaria rico em pouco
tempo . Ou que, ao menos, seus rendimentos seriam maiores do que eram no
campo.
Ao
migrar para a cidade em busca do paraíso urbano, porém, muitos
agricultores viram suas famílias destroçadas pelas drogas e choraram a
dura sorte com saudade do tempo quando eram felizes e não sabiam. Outros
procuram abrigar suas esperanças de retorno, aguardando pela encantada
reforma agrária debaixo da lona preta dos acampamentos do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
Mas,
nessa breve história, três perguntas precisam ser feitas: (1) Será que a
volta a este sistema de agricultura familiar é viável? (2) Esse retorno
não seria um retrocesso, tendo em vista o crescimento populacional que
exige cada vez maior produtividade com tecnologia moderna e avançada?
(3) E será que querer voltar à agricultura familiar é um saudosismo
romântico? A resposta para todas elas é sim e não. Analisemos cada uma dessas questões:
1. Será que a volta a este sistema de agricultura familiar é viável?
Sim,
a viabilidade da agricultura familiar passa pela produção com
orientação agroecológica, que por sua vez demandará uma reforma agrária
para disponibilizar terras aos que querem voltar para a agricultura de
base familiar.
Não,
se continuarmos atrasando o processo da reforma agrária e não
investirmos na vocação orgânica ou agroecológica do que ainda resta de
agricultura familiar. E, é claro, não avançaremos se não adotarmos
políticas orientadas a estancar a migração do campo para cidade.
2 . Esse retorno não seria um retrocesso, tendo em vista o crescimento populacional que exige cada vez maior produtividade com tecnologia moderna e avançada?
Sim,
é evidente que o crescimento demográfico exige cada vez maior produção
de alimentos. É exatamente por isso que não se explica a expulsão do
homem do campo para dar lugar à expansão da grande lavoura
modernizada — uma vez que é a agricultura familiar que abastece a
cidade. Que bom seria se houvesse uma produção programada a partir de um
planejamento social considerando o crescimento demográfico; e não
apenas a expansão do capital pelas vias do agronegócio.
Não,
porque quem produz e abastece as cidades não é o agronegócio, fruto da
expansão do capitalismo ao campo, da revolução verde, da modernização da
agricultura baseada na vocação agroexportadora. É nesse contexto que se
aplicam as técnicas agrícolas modernas — com o intuito de produzir cada
vez mais em cada vez menos tempo, degradando solo e natureza e sem
abastecer a população urbana nacional com alimentos de boa qualidade
nutricional e ambiental.
Quem
realmente atende à demanda do crescimento demográfico é a agricultura
familiar. Afinal, é ela que produz alimentos para consumo interno e que
está cada vez mais pressionada a deixar o espaço para a grande lavoura
agroexportadora.
Outro
absurdo é pensar que o crescimento demográfico é responsável pela
concentração urbana. A maior responsabilidade da concentração urbana
recai sobre a migração do campo para a cidade. Se toda esta gente — que
muitas vezes foi literalmente expulsa do campo ou migrou alimentando a
ilusão de que ganharia mais diante do parco rendimento da sua
lavoura — tivesse ficado no campo, não teríamos a explosão demográfica
urbana. Teríamos um crescimento populacional equilibrado no campo e na
cidade. Tradicionalmente, o camponês saía em busca de terras para seus
filhos em novas fronteiras agrícolas, para que não precisasse se
aventurar na cidade em busca de emprego. E, pior, esta gente que foi
desestimulada em sua atividade agrícola hoje faz falta no campo — e
passou a consumir em vez de produzir alimentos.
3. E será que querer voltar à agricultura familiar é um saudosismo romântico?
Sim,
quem não sente saudade dos bons tempos? O romantismo conta com o
sentimento humano e tanto provoca a saudade como curte a saudade daquilo
que deu certo e que fez bem.
Não,
não é tanto o saudosismo romântico dos tempos passados que nos move a
querer recuperar o tempo perdido, recuperar o que foi destruído. Sabemos
que nunca será igual. Mas sabemos também que se não voltarmos à
agricultura familiar e, agora mais do que nunca, sob a orientação
agroecológica, não conseguiremos evitar o colapso do inchaço urbano cada
vez menos sustentável.
É
improdutivo pensar em sustentabilidade urbana sem uma reforma no campo.
Afinal, o sustento da cidade se encontra no campo. Se enfraquecemos ou
eliminamos a pequena agricultura familiar orgânica, a cidade morre de
fome ou envenenada pelo agrotóxico da produção em grande escala. Isto é
tão simples e lógico — que até uma mosca sabe distinguir a margarina da
manteiga natural fazendo seu pouso no alimento natural e saudável.
Já
quanto ao crescimento demográfico, até os ratos em sua tradição de vida
nos dão de dez a zero. Normalmente, o chefe ou cacique da população dos
ratos possui de dez a doze fêmeas e ele só emprenha todas elas se
souber que existe alimento suficiente para toda população que será
gerada. Se perceber que existe pouco alimento disponível, ele limita-se a
reproduzir apenas com duas de suas fêmeas.
E
o que dizer de nós, que não nos orientamos por um planejamento familiar
consistente e tampouco por um planejamento agrícola racional? Nosso
planejamento se aplica para da expansão do capital, mas não para a
sustentação da família humana.